Popcafé #39 Especial: alegorias bíblicas, doçura e violência no brilhante Ataque dos Cães
Novo filme da Netflix, com Benedict Cumberbatch e Kirsten Dunst, é um dos melhores de 2021 e traz narrativa encravada em mistérios e alegorias.
Não muito depois que personagens, trama e dilemas estão bem estabelecidos no início de Ataque dos Cães (Netflix, 2021), George Burbank (Jesse Plemons) olha para Rose (Kirsten Dunst) e revela uma felicidade particular: “eu só queria dizer como é bom não estar sozinho”. A frase, que parece romântica à princípio, entrega bastante sobre o dilema de um personagem que não só tem pais vivos, mas um irmão que vive sob o mesmo teto e compartilha os trabalhos na fazenda que fizeram deles bem sucedidos no estado de Montana nos EUA.
Ataque dos Cães é bastante sobre essa solidão “acompanhada” e acaba por construir uma história que mostra que o dilema de George é também o da viúva Rose e do seu filho Peter, que cuidam de uma hospedaria na região. Adaptando o livro de Thomas Savage (de 1967), a neozelandesa Jane Campion (vencedora da Palma de Ouro em Cannes com O Piano em 1993) nos proporciona imersão em que cada detalhe importa muito mais que se imagina - fazendo com que seu potencial de revisão cresça imensamente.
O irmão de George, Phil (com um Benedict Cumberbatch provavelmente em seu melhor papel) é o seu oposto. Mesmo ambos tendo a oportunidade de estudar “na cidade”, o primeiro é polido, introspectivo e se veste como um banqueiro; o segundo é um cowboy bruto, falador e curiosamente nostálgico: ambos foram introduzidos à vida do rancho por um misterioso Bronco Henry. Figura enigmática e já falecida, nunca aparece na história mas está sempre presente.
Tudo se transforma quando George decide casar com Rose, que na visão de Phil é apenas “a viúva de um suicida” que tem um filho adolescente sensível demais para aquele mundo. Levando esposa e enteado para casa, Phil não demora para demonstrar seu desprezo pela decisão do irmão e os novos moradores. A postura do cunhado de Rose é constantemente ríspida e brilhantemente representada em uma cena específica. Rose ensaia uma música ao piano, nervosa com a possibilidade de ser observada por Phil. Em um só plano, a câmera a vê de longe e por trás enquanto ela toca. Ela para, olha por sobre os ombros e quando vira e volta a tocar, a câmera se aproxima como um animal a caçar. Sentindo uma presença que não está ali, começa a ouvir o cunhado tocando seu banjo tentando acompanha-la lá do primeiro andar da casa. A câmera a pressiona ainda mais e somos sufocados junto a ela. Ela é a caça de Phil.
Em paralelo, há o conflito entre Phil e Peter, o filho de Rose. Aspirante à medicina, o adolescente é esquálido, pálido e o total oposto de tudo aquilo que poderia distraí-lo fora de casa: é zombado pelos outros cowboys, chamado de “viadinho”. Em súbito interesse, em momento vulnerável de Rose, Phil decide trazer Peter para perto e fazer do menino o que Bronco Henry fez dele: formá-lo para enfrentar o mundo e não deixar que sua mãe o torne um maricas. Sempre com olhar receoso, entretanto, Peter entra de cabeça ao descobrir pequenos segredos reveladores do bruto Phil.
É a partir dessa faísca que Jane Campion nos concede o seu melhor na tela: não mais sobre solidão, Ataque dos Cães se torna um filme sobre o embate entre a toxicidade e a doçura, aqui muito bem representada pelo couro animal. Material extremamente maleável e macio ao toque afiado da faca, é também proteção equilibrada para as calças de um vaqueiro andando por entre arbustos e possíveis predadores. Quando cortado em tiras finas e trançada meticulosamente, como bem faz Phil para presentear Peter, vira uma corda rígida e diferenciada, servindo para domar animais mais fortes que cordas de algodão.
Assim, se a maior das riquezas de Ataque dos Cães está em cada detalhe ressoando adequadamente na narrativa, é nos objetos inanimados que se encontra sua parte mais inestimável. Cordas, pianos, arapucas, selas, farpas, chaves, banjos, lenços e flores de papel: tudo, absolutamente tudo, é muito mais do que parece. E Campion, entretanto, não nos entrega tais imagens como alegorias simples e objetivas.
Ataque dos Cães, nessa rota, sugere de forma bastante tangível uma dinâmica de admiração, aversão e desejo entre Phil e seus cowboys, mas especialmente com Peter. O que torna tudo ainda mais fascinante são as revelações graduais que se faz não sobre o garoto, mas sobre o aspirante a Bronco. Sem revelar demais neste texto, é de se dizer que a riqueza maior do tema está no subtexto bíblico que acaba por envolvê-lo: o nome do filme (melhor em inglês, “O Poder do Cão”) é uma referência direta ao Salmo de Davi número 22, versículo 20 que é a epígrafe do livro de Savage: “Livra-me da espada, e a minha vida do poder do cão”. A leitura completa do poema, contudo, revela muito mais: é o salmo que é citado por Cristo na crucificação e faz referências a algozes e sofrimentos humilhantes.
Assistir Ataque dos Cães é certamente uma experiência ainda melhor na revisão. Tal qual o cinema de Paul Thomas Anderson em Sangue Negro (com quem Campion compartilha o compositor de trilha sonora - Jonny Greenwood do Radiohead) ou Kelly Reichardt em First Cow, Jane Campion muito claramente se dedicou a pensar cada plano não apenas como pinturas fantásticas pela fotografia de Ari Wegner, mas no pensar a narrativa a cada frame. Seu trabalho é minucioso - como poeta que gasta mais tempo procurando imagens do que rimas. Assim, rever o filme é necessário não por um caráter enigmático ou complexo, mas pelo prazer de retornar à força do seu raro cinema.
Top 5 aleatório da semana
1. Admiro o rap não como ouvinte frequente, mas ouço os álbuns como quem assiste filmes. E o cearense residente em São Paulo, Don L, parece se preocupar em ser o mais cinematográfico possível em seus discos. Roteiro Para Aïnouz Vol. 2, o segundo da sua trilogia de trás pra frente (sim, o primeiro foi o volume 3), é uma experiência riquíssima sobre as dualidades do Brasil de hoje, entre polícia e marginalizados, religião de púlpito e fé das ruas. É outro nível e, sim, é uma reverência/referência ao cinema do também cearense Karin Aïnouz. Vale ver a experiência visual no YouTube.
2. Jordan Klepper, do Daily Show de Trevor Noah, é um jornalista de humor, especialista em entrevistar republicanos, antivax e afins nos EUA. Sua última visita ao sul da Califórnia durante alguns protestos contra vacinação de Covid é imperdível (legendas em inglês).
3. Um agente funerário super didático e simpático explica o quão precisas e realistas são famosas cenas de embalsamamento e maquiagem em séries e filmes.
4. Os ensaios sobre cinema venceram. Gênero que se difundiu no YouTube ao longo dos últimos anos, agora ganha uma série na Netflix produzida por David Fincher. A Ótica do Cinema (Voir) chegou ao catálogo e traz, inclusive, Tony Zhou, famoso youtuber desbravador da cena de film essays no canal Every Frame a Painting.
5. Muita gente despreza a enormidade de recursos digitais utilizados para produzir grandes hits da música pop. Alguns artistas, entretanto, estão longe de usar AutoTune e afins, apenas porque não precisam. Ariana Grande, nesse making of de “Positions”, mostra mais do que uma grande voz, mas uma espécie de “pintura de harmonias” no estúdio.
É isso por hoje, pessoas. Espero que seu fim de semana seja com Ataque dos Cães e bons discos.
Um abraço
Ricardo Oliveira